Resumo: Desde o final da década de 1970, quando se registraram os primeiros estudos no campo da Antropologia da Ciência e da Tecnologia, a área tem experimentado um crescimento significativo. Se no início o campo era marcado pelos Estudos de Laboratório, nos dias atuais, existe uma soma de grande diversidade de temas e abordagens metodológicas. Em linha com o momento atual, este grupo de trabalho acolhe trabalhos amparados em etnografias de centros de pesquisa; em redes tecno-científicas; em pesquisas centradas nas materialidades e análises de controvérsias sociotécnicas; assim como em temas clássicos do campo. Porém, também serão objeto de nossa atenção as reflexões sobre as interfaces entre ciência e outros regimes de conhecimento. Nosso convite é “ficar com o problema”, contribuindo para as reflexões sobre narrativas alternativas e a complexidade das fabulações especulativas. Desta maneira, acolhemos as leituras sobre as conexões entre os estudos CTS, os estudos de gênero e as relações étnico-raciais, de forma ampla, além das discussões sobre a ciência e o antropoceno. Adicionalmente, nos interessam os debates sobre a produção de conhecimento científico em contextos ditos periféricos, as investigações sobre os saberes indígenas e quilombolas, e as etnografias entre coletivos que antagonizam com os cientistas e que são, assim, proponentes de ideias negacionistas e conspiratórias. Em suma, o GT abrirá espaço para trabalhos antropológicos, e antropologicamente orientados, sobre a prática científica, seus tensionamentos internos e as relações com suas fronteiras.
Coordenadores: Rafael Antunes Almeida (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira), Daniel Alves de Jesus Figueiredo (Universidade Federal de Minas Gerais)
Debatedores: Guilherme José da Silva e Sá (Universidade de Brasília),Flora Rodrigues Gonçalves (Fiocruz)
17/09/2025 – Sessão 01
- Horário: 14:00 – 16:00
- Local: Mirante do Rio – Sala 203 (2o andar)
“Acervo da vergonha”: intencionalidades e controvérsias – Lucas dos Santos de Paulo (UNB), Rodrigo Rabello da Silva (UNB)
A Fundação Cultural Palmares (FCP), criada a partir da Constituição Federal de 1988, é um equipamento relevante na luta por igualdade racial e na conquista de políticas públicas para a população negra e afrodescendente. Durante a gestão de Sérgio Camargo (2019-2022), político filiado ao Partido Liberal (PL), a instituição foi convertida em instrumento antagônico, propagador de ações racistas e intolerantes. O chamado “Acervo da Vergonha”, criado na Fundação para expor obras classificadas por ele como “vergonhosas” e “marxistas”, exemplifica esse processo. Objetivo: Esta pesquisa investiga, a partir da constituição do “Acervo”, as intencionalidades e controvérsias envolvidas, considerando o valor simbólico do livro e da coleção bibliográfica da Fundação. Metodologia: Para isso, utilizou-se: (i) levantamento bibliográfico, (ii) pesquisa documental, (iii) entrevistas semiestruturadas com funcionários que tiveram contato direto com o “Acervo” e (iv) apoio heurístico da teoria ator-rede. Resultados: (i) coleções sobre práxis africanas são fundamentais para a preservação da cultura negra e afro-brasileira; (ii) entidades sociais manifestaram-se contrariamente à criação do espaço; (iii) funcionários o definiram como censura e promoção política de Camargo; e (iv) as controvérsias envolvem disputas simbólicas sobre as coleções que compõe o acervo da Fundação. Considerações finais: Conclui-se que o “Acervo da Vergonha” representou um ataque à história da FCP e à luta dos movimentos negros no Brasil.
Das formas de sonhar: reflexões sobre exercícios de construção de mundos em meio às pinturas rupestres do Vale do Peruaçu – Lucas Morais D’Assumpção Soares (UFMG)
Ao norte de Minas Gerais, já quase na Bahia, o rio Peruaçu, um dos muitos que brotam da margem esquerda do Velho Chico, correu em meio ao calcário por milênios, esculpindo um formidável cânion chamado de Vale do Peruaçu. Sensível a água como é, o calcário ficou cravejado de lapas e abrigos rupestres com o passar dos anos. Esses abrigos, protegidos por densa mata de galeria – indiferente à caatinga e ao cerrado que rodeiam – são lugares familiares para uma sorte de seres afetados pelo espetáculo proporcionado pelo Vale. Nos últimos anos, venho me aproximando de um dos muitos conjuntos de seres que frequentam as lapas – as pinturas rupestres, encontradas aos montes em intensos entrelaçamentos nas paredes. Assaz sociáveis, as pinturas peruaçuanas protagonizam encaixes e desencaixes entre si, são companheiras de longa data – ao menos 40 anos – de pesquisadorus do setor de arqueologia da UFMG, no qual demoradas relações de campo foram transformadas em títulos acadêmicos, além de serem, primeiramente, parte do corpo-território xakriabá, que ensina e cuida de sues filhes compartilhando com elus sua beleza, para que fiquem psedi (bem-feito e bonito em Akwê). Aqui, pretendo compartilhar algumas reflexões sobre as relações mantidas entre arqueólogues não-indígenas e as pinturas encontradas nas lapas, e pensar em diferenças com as relações de ensino e aprendizado realizado por conhecedores do povo Xakriabá quando investigam os “presentes dos antigos” que colorem seus corpos e paredes.
Desarquivando não humanos nos arquivos dos experimentos de Gregory Bateson – Camila Montagner Fama (UNICAMP)
“A descrição feita pelo biólogo não é idêntica ao que ele descreve mesmo se ela apresenta um espécime em um museu”, escreveu o biólogo e antropólogo Gregory Bateson. Levando em conta que mesmo quando as coisas vivas são elas mesmas usadas para codificar a mensagem ela continua sendo sobre algo ou alguém, o presente trabalho propõe uma incursão nos arquivos dos chamados Bateson Papers mantidos e disponibilizados na Universidade da Califórnia Santa Cruz. A pesquisa busca respostas para entender como e se é possível saber mais sobre os animais e seus ambientes a partir do modo como Bateson os descreveu com suas fotografias, filmes, experimentos, artigos, aulas, anotações e livros. Ao fazer uma abordagem transdisciplinar que leva em conta trabalhos recentes dos estudos sociais da ciência, estudos multiespécies e da filosofia da ciência sobre como animais atuam em processos de mundificação, o estudo também se dispõe a tratar do modo como os animais que se deixam entrever nesse arquivo estiveram implicados em certas construções de mundo.
Palavras-chave: estudos multiespécies, Gregory Bateson, estudos sociais da ciência, arquivo
Representar, Participar e Formular: tensões entre o desejo e o real – Fernanda Gomes Rodrigues (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação)
Pretende-se explorar as fronteiras, intersecções e tensões entre a ciência e outros regimes de conhecimento, tendo como referência central o relatório da 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação-CNCTI, Livro Lilás e outros documentos relacionados a 5ª CNCTI. A Conferência buscou se constituir como fórum de discussão, além de coletar propostas de políticas públicas para a nova Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (ENCTI). O tema escolhido foi “Para um Brasil Justo, Sustentável e Desenvolvido”. Dialogando com a chamada do 11º Simpósio Nacional de Ciência, Tecnologia e Sociedade discutir, a partir da etnografia de documentos, pretende-se debater a possibilidade de produção de uma política científica brasileira que se enrede com saberes locais, indígenas, tradicionais e populares, revelando encruzilhadas epistêmicas e fricções entre diferentes mundos de conhecimento. Um olhar mais reflexivo sobre os acordos e impasses que se apresentam no cenário brasileiro contemporâneo, pode fomentar reflexões pertinentes para a antropologia da ciência e, podemos imaginar, para a formulação de políticas públicas sensíveis à diversidade epistêmica. Imaginar é um passo.
18/09/2025 – Sessão 02
- Horário: 14:00 – 16:00
- Local: Mirante do Rio – Sala 203 (2o andar)
“Guerra às Drogas, Racismo Institucional e Reparação Histórica: Etnografia de Saberes Antiproibicionistas em Fricção com o Estado” – Monique Fernanda de Moura Prado (UFJF), Victor Luiz Alves Mourão (UFV)
A política de “Guerra às Drogas” no Brasil opera como um dispositivo sociotécnico que naturaliza
violências estruturantes, articulando racismo, necropolítica e encarceramento em massa. Partindo de
uma abordagem etnográfica multissituada (em coletivos antiproibicionistas, fóruns de justiça transicional e territórios periféricos), este trabalho analisa como ativistas negros e periféricos constroem narrativas alternativas que denunciam o proibicionismo como prolongamento do colonialismo e demandam reparação histórica. A pesquisa dialoga com o campo da Antropologia da Ciência ao investigar as encruzilhadas epistêmicas entre saberes jurídico-policiais (que legitimam a criminalização) e saberes insurgentes (como os da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas e da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas), que reinterpretam a maconha como planta de poder, medicina ancestral e símbolo de resistência. Os dados revelam que a fricção de mundos se materializa em disputas sobre: 1. Corpos e territórios: O genocídio negro (com 99,3% das vítimas de letalidade policial sendo jovens negros, segundo o Anuário da Violência 2023) e a destruição material em favelas durante operações policiais; 2. Economias políticas: O custo bilionário do encarceramento (R$5,2 bi/ano em SP e RJ, conforme o projeto “Drogas: Quanto Custa Proibir?”) versus propostas de redistribuição de recursos para saúde e educação.
A ciência canábica no Brasil: entre a hegemonia biomédica e a invisibilidade de saberes tradicionais – Leticia Pavanatte Gasparino (UNICAMP)
Este trabalho se propõe a analisar como a produção científica sobre a Cannabis Sativa no Brasil. Por meio de uma abordagem qualitativa e documental, a pesquisa mapeia dados extraídos do Diretório dos Grupos de Pesquisa, Plataforma Brasil e Plataforma Lattes, buscando identificar as áreas do conhecimento envolvidas, as temáticas predominantes e as terminologias utilizadas na produção acadêmica nacional sobre a Cannabis. Os resultados parciais apontam para uma concentração de estudos voltados ao canabidiol, com reduzida atenção a outros canabinoides – especialmente ao tetrahidrocanabinol – e escassa problematização sobre os contextos culturais, espirituais e comunitários de uso da planta. A ausência de abordagens que considerem os modos de vida, as práticas de cuidado e as experiências terapêuticas alternativas historicamente associadas à Cannabis revela um processo de marginalização epistêmica. Esta pesquisa busca, assim, contribuir para o debate sobre a coprodução entre ciência e políticas públicas em saúde, como a hipótese de Farmácia Viva no SUS, evidenciando os efeitos das escolhas normativas e institucionais sobre a delimitação de objetos legítimos de pesquisa. Ao trazer a discussão para o campo das terapias psicodélicas e das tecnologias em saúde, o trabalho problematiza as formas como saberes não-hegemônicos são sistematicamente excluídos das agendas científicas, apontando para a necessidade de abordagens mais simétricas na construção do conhecimento sobre substâncias com potencial terapêutico.
Racismo ambiental e as disputas simbólicas, discursivas e políticas na Lagoa do Abaeté em Salvador, Bahia – Anaíra Lôbo e Pinheiro (UFBA)
A proposta da pesquisa é analisar a relação de comunidades tradicionais, como povos de terreiro, com a Lagoa do Abaeté, localizada no bairro de Itapuã em Salvador, Bahia, observando seu envolvimento na preservação local. Isto através do mapeamento das comunidades tradicionais; da identificação das disputas simbólicas e discursivas em torno da memória, ocupação e destino da Lagoa; da análise das disputas políticas; e da identificação dos processos de resistência para preservação do Abaeté frente ao processo de urbanização. Para isso, utilizaremos como metodologia: pesquisa bibliográfica, pesquisa documental e entrevistas para coleta de dados. A pesquisa ainda está em andamento, mas ressalta-se que a Lagoa do Abaeté foi ocupada historicamente por lavadeiras, pescadores, povos de religião de matriz africana e outros grupos sociais que, em suas margens, desenvolveram tradições e a cultura local. Aliado a essa ocupação, intensificou-se o processo de urbanização territorial, movimento contraditório entre o modo de vida das comunidades tradicionais e o desenvolvimento urbano marcado por conflito, por manipulações políticas e por interesses econômicos diversos, principalmente no que diz respeito à compreensão sobre natureza, meio ambiente e território, com impactos diretos no modo de viver na cidade, na expressão das crenças, através especialmente das práticas religiosas e tradições vivas, presentes na localidade. A relevância do tema se confirma pela atualidade do debate ambiental, diante da emergência climática e suas consequências desiguais em razão do racismo.
Cecinepá nas encruzilhadas: metodologias figuradas para aterrar mundos em fricção – Jonathan Fenile de Castro (UNICAMP)
Cecinepá é uma plataforma-metodologia para a construção associativa de conhecimentos, projetada para mediar e aterrar mundos em fricção diante das crises socioecológicas do presente. O projeto articula a noção de “tentacularidade” de Donna Haraway com o “Princípio de Falsificação de Stengers-Despret” (PFSD), delineado por Latour, para compor uma meta-metodologia de aterramento. O PFSD impõe uma demanda rigorosa pela articulação de diferenças ao conhecimento científico, partindo da ideia de um corpo que se constrói e se estende conforme se sensibiliza a novos elementos. Este corpo latouriano é associado à tentacularidade – a qualidade de estender-se com cuidado para criar conexões – para forjar uma noção de saber que não separa cognição, afeto e relação: um saber-sensibilidade-laço. Compreendendo a aprendizagem como essa sensibilização mútua, o projeto desenvolve figurações narrativas e práticas afetivas para articular coletivamente estes saberes. O objetivo é estimular a sensibilidade entre humanos e não-humanos, de modo a compor um mundo comum aterrado no Chthuluceno.